Samba-enredo da Grande Rio traduz as encantarias da Amazônia no Carnaval 2025
- Larissa Monteiro
- 7 de mar.
- 10 min de leitura
Atualizado: 10 de mar.
Inspirado na canção “Quatro Contas” de Dona Onete, o samba-enredo propõe uma viagem e mergulho nas misticidades dos rios amazônicos do Grão-Pará

"Pororoca me leva pro fundo do igarapé
Se desvia da flecha, não se escancha em puraqué
Quem é de barro, no igapó, é Caruana
Boto assovia, Mãe D'água dança"
Acadêmicos do Grande Rio levou o Brasil e o mundo para mergulharem nas profundezas dos rios da Amazônia, especialmente nas encantarias do Pará, estado do norte brasileiro. A escola consagrou-se como a segunda campeã do Grupo Especial no Carnaval do Rio de Janeiro em 2025.
O samba-enredo “Pororocas Parawaras: As Águas dos Meus Encantos nas Contas dos Curimbós” contou a história das três princesas turcas – Jarina, Mariana e Herondina –, que se tornaram caboclas encantadas após passarem por uma tempestade. A letra é inspirada na canção “Quatro Contas”, de Dona Onete, e a lenda é cultuada no tambor de mina, no curimbó e na pajelança cabocla.
Na mitologia da encantaria, as princesas turcas vieram da Turquia, foragidas da guerra que, teoricamente, marcou o fim do Império Otomano, ocorrida há mais de um século. Ao chegarem nas proximidades da Ilha do Marajó, sofreram um alagamento que as levou para o fundo do rio, onde passaram a fazer parte do mundo dos encantados. Elas receberam proteção da entidade local chamada Verequete. Segundo o conto popular e, conforme citado na trama, cada princesa se transformou em um animal da região.
Para a criação do enredo, os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora contaram com a criatividade e sabedoria do grupo paraense Deixa Falar, formado por Mestre Damasceno, Ailson Picanço, Davison Jaime, Marcelo Moraes e Tay Coelho. A inspiração surgiu da canção “Quatro Contos”, de dona Ionete da Silveira Gama, multiartista afro-brasileira nascida em Cachoeira do Arari, interior do Pará.
O Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, representada pelas cores verde, branco e vermelho, originou-se no centro do município de Duque de Caxias, estado do Rio de Janeiro. Foi campeã em 2022, mesmo ano em que se tornou Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do estado. Nos anos de 2006, 2007, 2010, 2020, e 2025, marcou história como vice-campeã no Grupo Especial.

Canção Quatro Contas de Dona Onete
Rufa esse tambor pra nagô!
Rufa esse tambor pra nagô!
Na linha dos encantados
Nagô é o grande protetor
Água doce me leva, me leva
Deixo as águas me levar
As águas do meus encanto é doce
As águas do meus encanto é doce
Muito forte a minha fé
Muito forte a minha fé
São águas de Nazaré
São águas de Nazaré
Água doce me leva
Me leva, me leva, me leva, me leva
Deixo as águas me levar
A felicidade tá me chamando
A felicidade mandou me buscar
A felicidade está me esperando
Logo logo eu chego lá
Água doce me leva
Me leva, me leva, me leva, me leva
Pra barreira do mar
Quatro contas me protegem desde menina
Quatro contas me protegem desde menina
A vermelha é Mariana
Salve, Salve Mariana!
Amarela é Jarina
Saravá dona Jarina!
A branca é caboca Jurema!
Juremê! Jurema!
A verde é a caboca brava
É minha caboca Herondina
Que não me deixa cair
Não me deixa tombar
Deixo as águas me levar
Água doce me leva
Me leva, me leva, me leva, me leva
Pra barreira do mar
Água doce me leva, me leva
Deixo as águas me levar
Salve, Salve, Mariana!
Saravá Dona Jarina!
Juremê! Jurema!
Rufa esse tambor pra Nagô!
Salve a nossa encantaria!
(Por: Dona Onete)

Exaltação da fauna e da flora amazônica
A rica composição dos artistas paraenses não celebra apenas a cultura, mas também a natureza, e chama a atenção do público para a urgência de preservar os rios, a fauna e a flora da Amazônia. A “arara cantadeira” traduz esse significado de preservação, por simbolizar a cabocla Mariana, uma mensageira entre o mundo físico e o espiritual.
Na lenda, Herondina se transforma em “onça do Grão-Pará”, e Jarina se transforma em “jiboia”, mas, em alguns contos, ela também se transforma em uma “borboleta azul”. Logo, o enredo quer dizer: ao salvar esses animais, a humanidade manterá as encantarias, que contribuem com os ensinamentos dos pajés e médiuns que vivem na região.
“Se a Boiúna se agita, é banzeiro, banzeiro
Quatro contas, um cocar
Salve, Arara Cantadeira
Borboleta à Espreita
E a Onça do Grão-Pará”
Pororoca é um fenômeno natural que ocorre entre os meses de janeiro e abril, mais precisamente durante a lua cheia e a lua nova. O encontro das águas de um rio com as do mar forma ondas que chegam a 5 metros de altura e duram, em média, 40 minutos.
No Brasil, o fenômeno acontece na Foz do Amazonas, no litoral do Estado do Pará, e no rio Mearim, no Estado do Maranhão. Até 2015, também ocorria no Estado do Amapá, mas foi extinto devido ao secamento da foz do rio Araguari, em consequência da construção de usinas hidrelétricas, da criação de búfalos e da abertura de canais naquela região.
Na língua indígena tupi, o termo “pororoca” significa “grande estrondo”, e “parawaras” quer dizer “habitante do rio”. Ou seja, no enredo, as “pororocas parawaras” representam a voz daqueles que moram debaixo das águas. Esse grito forte, ecoando do fundo dos rios para a superfície, simboliza a força e a resistência dos encantados.

Samba-enredo da Acadêmicos do Grande Rio 2025
A Mina é Cocoriô
Feitiçaria Parawara
A mesma Lua da Turquia
Na travessia foi encantada
Maresia me guia sem medo
Pro banho de cheiro
Na encruzilhada, espuma do mar
Fez a flor do mururé desabrochar
Pororoca me leva
Pro fundo do igarapé
Se desvia da flecha, não se escancha em puraqué
Quem é de barro, no igapó, é Caruana
Boto assovia, ô, Mãe d'Água dança
Se a Boiúna se agita, é banzeiro, banzeiro
Quatro contas, um cocar
Salve, Arara Cantadeira
Borboleta à Espreita
E a Onça do Grão-Pará
Se a Boiúna se agita, é banzeiro, banzeiro
Quatro contas, um cocar
Salve, Arara Cantadeira
Borboleta à Espreita
E a Onça do Grão-Pará
Na curimba de babaçuê
Tem falange de ajuremados
A macaia codoense é macumba de outro lado
Venham ver as Três Princesas baiando no curimbó
É doutrina de santo rodando no meu carimbó
E foi assim
Suas espadas têm as ervas da jurema
Novos destinos no mesmo poema
E nos terreiros, perfume de patchouli
Acende a brasa do defumador
Pro mestre batucar a sua fé
Noite de festa, curió marajoara
Protege Caxias nas águas de Nazaré
É força de caboclo, vodum e orixá
Meu povo faz a curva como faz na gira
Chama Jarina, Herondina e Mariana
Grande Rio firma o samba no Tambor de Mina
É força de caboclo, vodum e orixá
Meu povo faz a curva como faz na gira
Chama Jarina, Herondina e Mariana
Grande Rio firma o samba no Tambor de Mina
(Por: Mestre Damasceno, Ailson Picanço, Davison Jaime, Marcelo Moraes e Tay Coelho)
Fotos 1 e 2: Reprodução/Rio Carnaval/Foto 3: Rafael Arantes
Cultura e espiritualidade dos indígenas e caboclos
No enredo para o Carnaval de 2025, a Grande Rio embarcou nas lendas e contos da região norte do Brasil. O objetivo: exaltar as manifestações culturais afro-indígenas – carimbó, tambor de mina e catimbó-jurema, braços da umbanda –, que cultuam caboclos, encantados, voduns e orixás. A letra descreve um cenário místico da vida em meio às profundezas das águas amazônicas.
A cunhã-poranga do Boi Garantido, Isabelle Nogueira, interpretou a Jurema, uma divindade feminina nativa que ensina a cura por meio das ervas medicinais aos curandeiros caboclos e indígenas. Na trama, é Jurema quem auxilia as princesas turcas e as transforma em animais sagrados da Amazônia.
“Na mitologia, Jurema é descrita como uma nativa que recebeu ensinamentos sagrados dos espíritos da floresta e tornou-se uma força encantada. Em outras versões, ela já nasce como um espírito da floresta, auxiliando curadores e pajés em suas práticas”, descreveu a amazonense Isabelle na rede social Instagram.

A bailarina e atriz Alane Dias levou para as passarelas do Sambódromo Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, o perfume das flores que envolve as princesas turcas, ao representar a “Dança das Flores”. Parafraseando a letra da canção “Faceira”, de Dona Onete, a paraense expressou em uma publicação no Instagram o seguinte:
“À frente da ala do Carimbó, deixo as águas me levarem, com uma flor no cabelo, uma boca pintada. Saúdo os mestres que trouxeram o tambor de mina até aqui, que fizeram florescer as histórias de Jarina, Herondina, Mariana e Jurema”.

A região amazônica é rica em diversidades culturais, lendas, contos, tradições e misticidades, que formam as identidades dos povos caboclos, negros e indígenas. A canção exalta o tambor de mina, o vodum, o orixá, o carimbó e a pajelança cabocla. Depois de reverenciar esses elementos, a letra ressalta a cultura indígena e cabocla ao falar de “feitiçaria de parawara”.
Na crença dos amazônidas, seres encantados que moram nos rios são aqueles que deixaram de existir fisicamente na terra e passaram a fazer parte do mundo espiritual – as lendas da Curuana, do Boto-Cor-de-Rosa e da Mãe D’água são alguns dos exemplos que retratam a passagem de pessoas ao encantamento.
Cultura e espiritualidade africana
O começo da letra, com a frase “A Mina é Cocoriô”, indica que os rituais religiosos do tambor de mina vão começar. A segunda parte da canção descreve o que ocorre nos terreiros do tambor de mina, uma religião afro-brasileira. Lá (nos terreiros), eles rezam, cultuam seus orixás, voduns e encantados, cantam, dançam e tocam atabaques.
O tambor de mina surgiu no Maranhão por volta do século XIX e tem forte presença no Piauí e na Amazônia. Essa religião une elementos dos rituais ameríndios, elementos do catolicismo e elementos das religiões africanas, como o Daomé e o Iorubá. Nela, são cultuadas as entidades espirituais africanas, os voduns e os orixás. Nos ritos do tambor de mina, os voduns e encantados são divindades com o mesmo significado.
“Na curimba de babaçuê
Tem falange de ajuremados
A macaia codoense é macumba de outro lado
Venham ver as Três Princesas baiando no curimbó
É doutrina de santo rodando no meu carimbo”
Nas religiões de matriz africana, “macaia” se refere a rituais realizados na mata pelos povos de terreiro da cidade de Codó, no Maranhão. O termo “curimba” significa grupos de pessoas que participam desses rituais, e “babaçuê” é um culto afro-brasileiro. Esse trecho do enredo destacado descreve o cenário do que acontece nos encontros dos povos de terreiros codoenses: há mistura de entidades afro-indígenas e encantados, como as três princesas turcas, onde todos cantam, rezam, dançam carimbó ao som dos instrumentos de origem africana.
"Macumba" é um instrumento de percussão parecido com o reco-reco. O mesmo termo representa um culto também de origem africana, com influências do catolicismo, ameríndios, espiritismo e outras religiões.

Valorização da herança africana no Brasil
No mundo afora, o Brasil é reconhecido pelo samba, mas pouco se tem consciência de que se trata de um gênero musical e uma dança de herança africana.
Alguns historiadores datam o surgimento do samba por volta do século XIX, no Rio de Janeiro, atualmente reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. O estilo se popularizou a partir da década de 1920, no governo de Getúlio Vargas, com o surgimento das escolas de samba e a difusão do rádio. O Brasil precisava construir uma identidade nacional, e, com o aumento da visibilidade do samba, o governo de Vargas viu nisso a oportunidade de torná-lo referência. No entanto, houve a tentativa de apagamento das influências africanas nessa história.
Historicamente, quando os negros vieram para o Brasil forçados a serem escravizados, nos poucos momentos “livres” que tinham, reuniam-se em espaços chamados terreiros para cultuar seus orixás, com rezas, cantos e batuques. Vários grupos de africanos encontraram no sincretismo religioso a “liberdade” para as práticas religiosas. Por exemplo, os santos católicos passaram a ser associados aos seus orixás, como alternativa para evitar castigos dos chamados “senhores de engenho”, que os escravizavam, já que seus modos de reza eram entendidos como práticas malignas.
A cultura afro-indígena se fez presente expressivamente nos carnavais de todo o Brasil em 2025. Ao menos 20 das 28 escolas de samba do Rio de Janeiro, do Grupo Especial e Série Ouro, homenagearam as culturas negra e indígena por meio de seus sambas-enredo.
Diante da grande visibilidade que tem o carnaval do Sul, onde o foco da grande mídia e do grande público está voltado, pode-se dizer que o aumento do uso dessas temáticas, atuais e urgentes, firma o Carnaval como um espaço de valorização da herança africana no Brasil. Isso dialoga com a questão da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2024.
No ano de 2024, o tema da redação do Enem foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”, proposto pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Dos 3,18 milhões de pessoas que realizaram a prova, apenas 12 tiraram nota mil na redação, sendo que apenas uma fazia parte de escola pública. Entre esses 12 participantes com nota máxima, 8 são mulheres. Dos 26 estados brasileiros, somente 9 tiveram participantes com nota mil, além do Distrito Federal.
Os baixos números acima citados demonstram a necessidade de aumentar os meios que priorizem o debate dessas temáticas para além das universidades públicas e das manifestações culturais, espaços que propõem conhecimento e respeito às interseccionalidades. Há necessidade de expandir esses temas nas escolas do ensino básico, nos veículos de comunicação, nas redes sociais etc., e continuar nesses espaços massivos, como o carnaval, que é uma festa que verbaliza, por meio da arte, protestos sociais acerca de pautas urgentes e emergentes, como questões políticas, econômicas, culturais, sociais e ambientais.
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